domingo, 20 de junho de 2010

Até breve Saramago...


Não poderia deixar passar uma pequena nota sobre o falecimento do escritor José Saramago.

O vício da literatura me apresentou Saramago pela primeira vez ao ganhar o livro Ensaio sobre a Cegueira, que resisti a ler por conta dos longos parágrafos. Longos não, imensos.

O problema está no meu jeito de ler. Gosto de saborear cada trecho, como quem mastiga infinitamente uma fruta antes de engolir e Saramago não oferece uma chance para que a minha mente navegue para além do livro, em reflexões sonhadoras, antes de continuar a leitura.

Ele me exigia ser uma leitora mais ansiosa, “engolindo” o livro de uma mordida só.

Por essa mania de interromper a leitura para pensar em todas as frases que mexiam com a minha forma de ver a vida, com minha realidade ou conjecturando qual realidade ele queria me mostrar, deixei Ensaio sobre a Cegueira de lado várias vezes.

Só que sempre o buscava novamente ainda mais curiosa, mesmo sendo necessário retornar ao início, porque sabia que a mente não havia acompanhado os olhos nas primeiras leituras.

Tive que aprender a ler Saramago.

Ele queria a atenção de quem está narrando a experiência mais importante de sua vida e conseguiu me envolver durante toda a maravilhosa noite em que o “devorei” até a última página.

Ensaio sobre a Cegueira é uma ode à força, capacidade de renúncia e amor incondicional que só nós mulheres sabemos possuir.

Não sei quantas mulheres Saramago amou, mas fico me perguntando com quantos sentimentos femininos ele conseguiu se identificar para poder narrar tão bem o comportamento da protagonista deste livro.

Poucos homens são capazes desta empatia. Poucos escritores serão como Saramago.

Não digo adeus. Digo até breve.
Vou reler Saramago e me reencontrar tão bela e sensível quanto ele pôde enxergar.

domingo, 13 de junho de 2010

Dia dos Namorados e Copa do Mundo

Imagine vestir aquela lingerie caríssima, gelar uma garrafa de vinho na temperatura certa,
montar todo o cenário romântico com direito às melhores taças, jantarzinho à luz de velas e
pétalas de rosas espalhadas pelo chão, esperar ele chegar ansiosa, abrir a porta após uma
retocadinha no batom e...
em vez de receber um beijo avassalador e apaixonado, dar de cara com cinco homens invadindo sua sala acompanhados de três caixas de cervejas. E, antes que consiga gritar, percebe que conhece um deles - o que tenta equilibrar uma montanha
de batatas chips
enquanto lhe dá um “selinho” distraído, dizendo: “oi amor, trouxe a galera pra ver o jogo da Inglaterra x EUA. Tem espaço no frezzer?”

Nessa hora, não adianta reclamar, ameaçar, nem desligar o disjuntor pra cortar a energia elétrica. As duas primeiras alternativas eles não ouvem -porque estão ocupados com a TV, o som e a corneta estridente que alternam entre eles - e a última só irá transferir a “galera” para a casa de outro amigo ou para o barzinho da esquina mais próxima.

Sei que esta rixa de namoro x futebol já deu mais comentário que a disputa entre Brasil x Argentina, mas a verdade é que muitas mulheres continuam sem entender essa paixão exagerada pelo esporte mais amado do Brasil.

Vejam que usei duas palavras importantes: paixão e amor.

Quando você pergunta a alguém a diferença entre a paixão e o amor, a resposta mais comum é que a paixão tem um prazo determinado para durar, mas o amor é eterno. Muitos dirão que, em relacionamentos entre casais, o amor também chega ao fim ou não teríamos tantos divórcios.
Eu acredito, porém, que o amor, quando verdadeiro, se transforma com o passar dos anos em amizade.
Podemos observar isso muito bem nos casais que completam Bodas de Prata, Ouro e atualmente alguns chegam as de Diamante.
Nos casamentos que duram tanto tempo, percebemos que a cumplicidade atinge um grau mais intenso e as formas de prazer se ampliam além do sexo, pela comunhão e entendimento sem palavras das manias, gostos e desejos um do outro.
Mas é preciso tempo para chegar a este ponto. E que se ame “mesmo que” o outro seja tão diferente de você, e nunca “apesar de que”.
“Apesar de que” não é amor, é acomodação.

Tá bem. Esse assunto combina mesmo com o clima de Dia dos Namorados, mas e o futebol?

Bem. Se concordarmos que paixão é um sentimento de curta duração, então o brasileiro não é só apaixonado pelo futebol; ele ama o futebol.
E, sem nenhum constrangimento, declara este amor para quem quiser ouvir.

Enquanto que, nos relacionamentos atuais, se tornou “brega” amar e demonstrar amor - ou seja, é chamado de extrema pieguice usar o adesivo “eu amo minha esposa” no automóvel, escrever poesias, comprar flores, tirar fotos formando um pequeno coração com as mãos, ou chorar comovido ao ouvir aquela canção que marcou seu primeiro encontro - no futebol tudo é permitido.

O amante deste esporte, que tem seu clímax na Copa do Mundo, expressa este amor de todas as formas possíveis e imagináveis: usa o adesivos com o brasão amado não só no seu automóvel, como também estampado na roupa, bonés e até mesmo na pele; escreve canções e hinos de juras eternas de amor incondicional; compra qualquer quinquilharia que leve o nome do seu time (ah! os horríveis canecos ocupando o armário...); colecionam fotos dos jogadores, do treinador, do massagista e do mascote do time; e ainda são capazes de colar, com fita durex (sic), na parede da sala, o pôster mais recente de seu amado time, estragando toda a decoração.

Este amor pelo seu time e pela Seleção Brasileira, nestes dias que de frenesi futebolesco, mantém o casamento de mais longa duração de que já se ouviu falar: do homem com o futebol. Este relacionamento contém tanta intensidade que se estende por gerações. E não tem nada de “apesar de”. O time é amado “mesmo que” venha a perder aquele último pênalti da decisão do campeonato.

Portanto, não tem lingerie que desvie a atenção do homem que ama do seu esporte preferido.
O caso é grave quando se trata de futebol e ainda mais quando é o Brasil rumo ao Hexa.

Mesmo assim, se acha que ainda deve tentar, quem sabe uma peça que tenha as cores do time dele. Ou então, deixá-lo se emocionar ao lhe ver completamente vestida de verde e amarelo.

Feliz Dia dos Namorados!
Feliz torcida rumo ao Hexa!



PS : Este ano, eu e este tricolor bonitão da foto completaremos 25 anos de casados. As Bodas de Prata ocorrem em julho. Por coincidência, logo depois do final da Copa do Mundo e pouco antes de continuar o Campeonato Brasileiro de Futebol.

terça-feira, 25 de maio de 2010

De mãe para mãe (uma resposta para Anna)


Por Ana Maria Chagas

Tive que refletir muito para responder a uma das leitoras, porque eu entendo muito bem os dois lados da história que ela conta em seu mail.
Diz respeito ao texto “Abram seus horizontes”
(http://cafezinhocomletras.blogspot.com/2010/05/abram-seus-horizontes.html) que foquei na vida profissional, mas para esta leitora, significou um recado para a mãe que está passando pela “Síndrome do Ninho Vazio”.
Mulher é bicho complicado e amadurecer não é nada fácil.
Não estou nem falando de rugas, cabelos brancos ou menopausa. Estou falando sobre a época das perdas, que todas nós alcançamos. Somos criadas por uma sociedade muito castradora onde mulher sempre foi sinônimo de maternidade.
Não sei se algo mudou nesta nova geração, mas sempre nos ensinaram que mulher é mãe em tempo integral: mãe dos filhos, das noras/genros, do marido e dos próprios pais quando envelhecem. Isso vira até uma ação semi-inconsciente, porque não queremos falhar no papel mais importante da mulher para a sociedade.
As próprias mulheres do círculo familiar, as amigas mais próximas ou colegas de trabalho vivem cobrando umas das outras: se a casa está em ordem, se os filhos passaram de ano, se o marido está bem alimentado e vestido, se sabe economizar nas compras, se sabemos cuidar de doentes, se telefonamos constantemente para nossos pais idosos, se permanecemos lindas, magras e maravilhosamente jovens e de bom humor, etc.
Temos padrões a seguir, desenhados pela TV, por revistas femininas, por tantos mais expectadores imaginários.
Sem nem dar conta disso, acabamos assumindo essa postura de dedicação e amor incondicional com a família que muitas vezes nos faz esquecer quem somos e do que gostamos para ceder aos desejos dos que amamos.
Tenta fazer o contrário e vem a culpa! Ai... a culpa que nos infligimos... Antes mesmo que os outros nos censurem, nós somos nossas maiores acusadoras.
Castramos nossos desejos e inserimos culpa quando cuidamos só de nós mesmas.
Vivemos o que é melhor para o outro. Vivemos até mesmo a vida do outro.
Então, com o tempo, vem chegando a maturidade e com ela a estação das perdas:
- Nossos pais, envelhecidos, se vão...
- Vai-se o marido, seja por morte ou separação (que para muitas é a morte!).
- E por fim, os filhos, que crescem, se casam, mudam de cidade por causa da profissão, ou simplesmente mudam para morar sozinhos.
E aí? O que a gente faz da nossa vida se ninguém mais precisa de nós? De quem vamos cuidar?
Aí que está a questão do quanto podemos atrapalhar a vida dos filhos na época em que eles estão prontos para seguir suas próprias vidas. Pode parecer insensatez da minha parte, mas tenho para mim que as mães que grudam nos filhos impedindo seu crescimento e liberdade de errar e seguirem seus próprios caminhos, camuflam como dedicação materna o que muitas vezes não passa de puro e simples egoísmo.
Pergunto agora para as mães de plantão: quando foi a última vez que pararam para cuidar de vocês mesmas?
Durante muito tempo eu vivia me perguntando qual o limite entre ser egoísta e estar cuidando da auto-estima. No que trata sobre maternidade, cheguei à conclusão que durante toda a minha vida consegui (só Deus sabe como) equilibrar os meus desejos e ambições com os dos meus familiares, usando duas coisas: bom senso e muito amor. Se for pesar na balança, sempre os coloquei em primeiro lugar, mas eu sempre abri espaço na agenda de um tempo só pra mim. Nem que tivesse que ficar sem dormir para isso...
Ou seja, uma equilibradora de pratos. É assim que se concilia maternidade com ser simplesmente mulher.
Parece óbvio, mas muita gente desconhece que, nos relacionamentos, somos egoístas quando decidimos fazer algo só para nós em detrimento do que os outros precisam como, por exemplo, gastar horrores com supérfluos enquanto seus filhos precisam de dentista ou uma boa escola, etc. Ou deixar sempre em segundo plano as necessidades dos que nos amam. Ou ainda, de modo mais grave, e que vem acontecendo muito ultimamente nos lares, deixar de ouvir os problemas dos filhos para assistir Big Brother (sic).
Que me perdoem os amantes dos reality shows, mas será que os problemas imbecis de 5 ou 6 “atores”, criados por eles mesmos, muitas vezes inventados para prender a atenção dos teleguiados, são mais importantes do que ouvir uma filha contar sobre sua primeira briga com o namorado ou consolar o choro de um bebê sonolento?
Mas voltando ao assunto que originou este texto, a única resposta que posso dar para a jovem leitora é que é possível ensinar uma mulher a ser mãe, mas fazer uma mãe compreender que sua missão terminou e que ela já pode dedicar mais tempo a si mesma, aí... é outra história!
Só posso deixar aqui, alguns questionamentos para reflexão:
- Onde foi parar a mulher que sua mãe foi?
- Porque ela acha que não será mais esta mulher? O que a impede?
- Quando ela reclamava que nunca tinha tempo para si mesma, o que ela gostaria de ter feito se tivesse tempo?
- Por que não fazer o que gostaria de ter feito, agora que ela tem tempo?
E boa sorte pra ela. Para todas nós.

sábado, 15 de maio de 2010

Abram seus horizontes...


Por Ana Maria Chagas

Deve ser por causa da idade ou por começar a assistir as aventuras do filho nos primeiros vôos rumo a independência financeira, mas comecei a olhar mais para quem eu sou e como tem sido a minha vida profissional até agora e não gostei nada do que vi.
Então decidi que devia fazer alguma coisa e quis mudar.
Procurar algo com o qual tenha realmente afinidade e que goste de fazer.
Senti saudade da época em que atuava na área de Recursos Humanos e decidi voltar.
Atualizei o currículo e pensei em começar a busca pela Internet.

Depois de muito navegar pelos mares das agências de emprego, sites de relaciomento, contatos diversos, sites de empregos,etc, cheguei a uma conclusão, não de todo triste porque estou empregada mas que seria alarmante se não estivesse: não estou fora do mercado só por causa da idade; estou fora do mercado por estar totalm
ente despreparada.

Não sei se existem casos parecidos como o meu por aí, mas a verdade é que me acomodei por causa da segurança (aparente talvez) e dos benefícios oferecidos.
Além de me acomodar, acho que andei meio míope porque durante estes anos dentro da mesma empresa, pensando que realmente estava cooperando, investi muito tempo em projetos internos que não foram adiante por questões políticas ou pelos quais não ganhei nenhum mérito e, conseqüentemente, não me trouxeram nenhum retorno.

Posso até entender hoje a geração Y, porque tivesse eu me preocupado mais com a carreira, talvez pudesse hoje ter um currículo muito mais atraente.
Cumprindo fielmente as metas traçadas pela organização, dirigi meu comportamento para obedecer todas as regras, trabalhar mais do o esperado, abrir mão de interesses pessoais, para no final das contas receber aumentos e bônus muitas vezes insignificantes.
Bônus este cujo medidor, na maioria das vezes, é a quantidade de metas que você deixou de cumprir, porque o orçamento é muito baixo e não dá pra premiar todo mundo e assim fica fácil saber quem não irá ganhar.
Neste caso não importam os fatores impeditivos - internos ou externos - para que se cumprisse as metas.
Enfim, você é avaliado pelo planejamento orçamentário.

Lembro de uma vez, logo que conclui a universidade, um funcionário antigo me disse: "Minha filha, não fica aqui não...abra seus horizontes".
Ouvi paciente, mas no fundo pensei: "Nossa, mas de jeito nenhum eu vou sair. Uma empresa grande, com tantos benefícios e eu tenho tanto a contribuir aqui...."
Pois foi uma grande ilusão que a gente se deixa levar até porque existe a preocupação financeira em relação à família.
Os filhos, principalmente, são os que sempre nos fazem manter os pés bem presos ao chão.
Mas o tempo passa...
Até que chega um dia que você abre os olhos, ou começa a usar óculos multifocais, e começa a questionar o trabalho.
Vê o quanto contribuiu e continua contribuindo e cobra um retorno que nunca vem.
E por passar a cobrar, passamos a desmotivados, cansativos, etc.
Já não recorrem mais à suas idéias, não porque são antiquadas, mas porque você vai perguntar o que ganhará por elas.
Então, todos os olhos se voltam para os jovens recém-contratados, que chegam altamente confiantes, cheios de idéias, sorridentes e prontos para agradar.
Ao meu redor estão muitos.
Têm muito a contribuir com seus diplomas de pós graduação e mestrado e tempo de sobra para ficar até muito depois do horário de trabalho. Nunca questionam nada porque sabem que primeiro é preciso mostrar todo seu potencial.

Bem...
Só posso dizer que, hoje, quem bate nos ombros desses meninos(as) e diz: “Filhos(as)...abram seus horizontes...”, sou eu.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Minha Linha de Sombra

Por Ana Maria Chagas

Pensei em começar a escrever sobre saudade... mas prefiro falar sobre a menopausa.

Bem, filhote viajou (ai, que saudade) e ontem senti a casa tão vazia que fui buscar consolo em um dos meus amigos mais íntimos e fiéis: um livro.

E convidei o inglês Joseph Conrad para um papinho, acompanhado de uma taça de vinho, para que fosse me conquistando aos poucos... Mas ele me ganhou já no primeiro capítulo do romance “A Linha de Sombra”, ao expressar tão bem aquela fase maravilhosa da existência humana quando somos (ou achamos que somos) absolutamente donos de nós mesmos e de nosso destino:

"É um privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções.Fecha-se atrás de si o pequeno portão da mera meninice – e adentra-se um jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso."

E não é exatamente assim?
Observem seus filhos. Olhem bem quantos traços, comportamentos, qualidades e defeitos eles adquiriram de você, somados aos que adquiriram na sociedade, mais os que eles escolheram para si mesmos, prontos para ir em busca de sua experiência universal!
Não é maravilhoso? Você se lembra desse “jardim encantado”?

E o autor complementa, que "aceitando a boa ou a má sorte, vai-se adiante. E o tempo também, caminha – até que se percebe uma linha de sombra avisando-nos que a região da mocidade também deverá ser deixada para trás."

A menopausa também é uma experiência universal muito pessoal. Cada uma das amigas com quem converso sente diferente, age diferente, tem expectativas diferentes.E eu? Como venho me sentindo de verdade?

Fiquei pensando – aliás, penso demais, já me disse um amigo (um humano, não um livro) – que estas mudanças que vêm acontecendo comigo, físicas e emocionais, que os médicos vêm sinalizando como uma pré-menopausa, significam que cheguei na “linha de sombra”, avisando que o tempo caminhou e terei que entrar mais uma vez em um país desconhecido.
E daí em diante, como será? Este novo jardim será também tão encantador? Continuará cheio de promessas? Terá suas seduções?

Até agora – exceto comer, beber e ir ao banheiro – tudo o mais foi opcional.
Uma imensa aventura guiada pelas escolhas constantes que tive que fazer: estudar, o que estudar; casar, com quem casar; ter filhos; trabalhar; voltar a estudar; rir ou chorar; amar ou desprezar; lutar ou desistir.As opções eram tantas! A “boa ou má sorte” era encarada como desafios, e tantos foram superados sem nenhum problema. Não havia tempo para lembrar o passado e nem interessava tanto o futuro. A vida era, literalmente, um presente. Desfrutava da ânsia de viver tudo ao mesmo tempo e com toda a intensidade possível. E não sentia nenhum medo do que viria a seguir.

Daí chega a maturidade e me pergunto: e se houvesse optado por outros caminhos?As vezes não perdoo as escolhas que julgo terem sido erradas e que me trouxeram dor, sofrimento ou mágoa, esquecendo que estas experiências vividas foram tão importantes para me conhecer melhor.

Mas será que realmente sei quem sou?O Passado bateu na porta e está tentando retornar devagar, ocupar um espaço muito grande e tirar toda a atenção do Futuro com quem voltei a flertar e tenho planos de transformar num ótimo relacionamento.
Não devo deixar o Passado ocupar meu quarto de hóspedes. Para não magoá-lo, convidei-o gentilmente a viver no quartinho dos fundos. Lá onde guardamos objetos que recordam bons momentos, mas não combinam mais com os novos sentimentos e expectativas espalhados pela casa e muito menos irão combinar com os que estão por vir.

O Futuro está se instalando aos poucos, como aquele hóspede que vai se habituando à rotina da casa, mas também gostaria de cooperar fazendo algumas boas mudanças. Devo aproveitar as novas opções que ele traz na bagagem e estar pronta para mais uma emocionante viagem.

Parodiando Joseph Conrad:

"É um privilégio do começo da maturidade viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções. Fecha-se atrás de si o pequeno portão da mera juventude – e adentra-se um jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso."

sábado, 28 de março de 2009

Reflexões

por Ana Maria Chagas

Estive longe do cafezinho e das letras, porque entrei no estressante processo de procura, compra e mudança para um novo apartamento.

Confesso que ando meio sem inspiração para escrever...

Por vezes a vida da gente parece girar em círculos repetitivos de acontecimentos, enquanto tentamos mudar nosso comportamento e atitudes pra tentar fazer tudo melhor desta ou de uma próxima vez.

Senti saudades do blog...De quem sou quando escrevo... Dos comentários dos amigos ...

Mas ainda me sinto bloqueada. Não por falta de idéias, mas por excesso ...

E fica difícil parar, escolher uma delas e deixar a emoção me guiar para escrever.

Faz algum tempo escrevi sobre como gostaria de ter uma porta USB no meu cérebro, onde pudesse ligar um cabo direto ao computador e fazer um download de tudo que penso.

Pena que não salvo os chats que tenho com amigos pelo MSN. Já deixei passar muito material para escrever. Bons textos em conversas bem interessantes com amigos idem.

Mas alguns deles não deixaram passar não. Tenho visto alguns dos meus pensamentos em artigos ou crônicas de amigos escritores.

É verdade! Um até ficou famoso..Mérito dele, claro. Mas um pouco de mim está lá.

Quem pode culpá-lo? Talvez, a sintonia de nossos pensamentos ao conversar fosse sempre tão perfeita, que ele acabou por assumir como dele algumas das minhas idéias.


Voltando a falar sobre escrever, durante a mudança para o novo apartamento, no meio dos livros, recortes, cartões e tudo mais que guardo com mais carinho, encontrei um antigo caderno onde comecei aos 15 anos de idade, em 1979, a deixar a caneta traduzir meus sentimentos.

Na maioria são pequenos textos, logicamente infantis, onde comecei a registrar as primeiras paixões, desilusões, etc. Mas relendo hoje, me surpreendi lembrando o que motivou a escrever cada um. Foi uma deliciosa viagem ao passado.

Escolhi um deles para postar aqui hoje, porque me surpreendeu que quase 30 anos depois eu ainda tenha em mim os sentimentos da menina que o escreveu :



Reflexões



Verde mar,
o que trouxeste?
Brancas ondas,
de onde viestes?
Ser mar, ser terra, ser ar,
seres que se formam... Viver...
Na areia sento e penso,
atrás do Ser o que há de ter?


Estou triste, sou só.
Sou mar seco, terra podre, ar impuro.
E na areia sentada ainda penso,
o que faz um barco sem rumo?


Folhas que caem,
encontraram liberdade?
Árvores secas, sentem saudades?
Temo a ilusão. Não amo.
Sou o pobre mar, a pobre terra, o pobre ar.
Mas aqui sento para pensar,
nunca posso do destino me afastar?


Gaivotas passam gritando,
estarão rindo?
O sol faz reflexos no mar,
tenta ele refletir também em mim?


Agora estou feliz, já posso sorrir.
Sou mar calmo, terra fértil, ar puro.
E levantando da areia penso ainda
para me completar, o que mais pode vir?

sábado, 10 de janeiro de 2009

Internet e Literatura

por Teócrito Abritta

Neste número o Montbläat chega gloriosamente a sua edição 300, estando caminhando pelo seu quinto ano de existência. Este percurso, como sabemos, tem sido difícil, mas, apesar das dificuldades, esta publicação independente continua existindo graças aos esforços de seu redator, Fritz Utzeri, da sua “equipe” de redação, de seus leitores e de alguns patrocinadores, mais movidos por interesses culturais do que econômicos ou políticos, como a Editora Sextante, contando ainda com a solidariedade de outros sites como bafafá on line, Guia Urbano e Universo da Mulher.

Hoje com o crescimento vertiginoso da Internet existe uma preocupação muito grande com o seu controle, tornando-se não um instrumento de democratização da informação, mas um dos mais eficientes meios de domínio da opinião pública.

Esta discussão do controle da informação é antiga e logo depois da Segunda Guerra Mundial refletia-se na literatura e no cinema, com obras como o romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, lançado em 1953 e adaptado magnificamente para o cinema em 1966, sob a direção de François Truffaut. Esta época também ficou marcada pelo romance 1984 escrito por George Orwell em 1949. Nestas obras a cultura era perseguida implacavelmente, realidades imaginárias tornavam-se verdades e tudo era controlado por meios eletrônicos. Em certo sentido a nossa televisão exerce um enorme controle sobre a opinião pública, favorecendo versões de interesse dos seus patrocinadores, sejam marcas comerciais ou forças políticas que controlam a sociedade de uma maneira não democrática.

Com o avanço da Internet as coisas podem piorar, já que assistimos entre as novas gerações um acentuado declínio dos hábitos de leitura de documentos impressos – sejam livros, revistas ou jornais – ficando fortemente dependentes das informações que chegam as suas mãos, muitas vezes de uma forma passiva, pela Internet. Com o desprestígio das obras escritas e com a ausência de reflexões mais profundas, o domínio dos patrocinadores tende a ser absoluto, ditando a moda, dizendo o que comer, favorecendo preconceitos, elegendo políticos e assim por diante, já que tudo terá maior credibilidade sob o manto de alguma grande empresa telefônica que promova espetáculos com superstars do que a palavra de um pensador independente e pouco conhecido que usa como arma apenas um apelo para a reflexão.

Isto pode ser visto com o abandono criminoso da nossa cultura, dos nossos museus, centros culturais, bibliotecas, universidades e uma total ausência de políticas sérias de educação e promoção social. Mesmo na época da ditadura militar existiam programas educacionais, como o Mobral, e políticas de melhoria de museus e centros culturais. Esta situação de terra arrasada na área cultural, uma das tristes marcas do governo Lula, pode ser sintetizada na Figura 1, onde livros são transformados em meras colunas decorativas para uma mesa.



Figura 1 – Livros são transformados em colunas decorativas para uma mesa.

Mas, estamos aqui mais para festejar a sobrevivência do Montbläat do que para nos aprofundarmos nesta discussão. Neste sentido vamos falar um pouco das preocupações que a literatura, o segmento cultural mais vulnerável a um possível controle de opinião, tem desta problemática.

Para isto, convido-os a ler, ou reler, o conto “Biblioteca de Babel” de Jorge Luis Borges, escrito em 1941 (publicado em Ficções, Companhia das Letras – 2007) e o ensaio “Uma Carta para Borges”, escrito em 1996 por Susan Sontag (publicado em Questão de Ênfase, Companhia das Letras – 2005).

Borges usa a imagem de uma biblioteca como uma metáfora do universo, da humanidade e de sua criação. Após dez anos da morte de Borges, Susan Sontag fez uma grande homenagem a sua genialidade com este ensaio, em forma de uma carta pessoal, onde deixa transparecer as suas preocupações com os livros, a cultura e a liberdade de expressão. Abaixo transcrevo algumas das palavras desta escritora que conseguem falar muito mais do que os meus comentários.

... Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória... Eles nos dão também o modelo da autotranscendência...
... Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada...
... Em breve, nos dizem, invocaremos em “telas-livro” quaisquer “textos” que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, “interagir”. Quando os livros se tornarem “textos” com o que “interagiremos” segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Esse é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais “democrático”. É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade – e do livro.
... Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e o nosso herói.


Há quatro anos Susan Sontag partiu de nosso mundo para juntar-se a Borges na “Grande Biblioteca Celeste”, deixando-nos estas belas palavras para refletirmos.

Espero que esta reflexão contribua para que nós da comunidade do Mont encontremos uma solução para continuarmos semana após semana, construindo volumes para esta infinita biblioteca.

Do Rádio Galena a Internet

Por Teócrito Abritta

Outro dia em uma cafeteria, ao observar os verdadeiros escritórios móveis dos freqüentadores, em sua maioria jovens, com seus notebooks conectados pelo mundo afora via Wi-Fi, fiquei a refletir na vertiginosa evolução dos meios de comunicação e da escrita – que, devido a sua variedade, chamamos propriamente de multimídia – que testemunhei nos 61 anos de minha existência. Uma elegante jovem ao meu lado, digitando o seu notebook com uma velocidade invejável, lembrou-me de uma antiga foto intitulada, Dactylo tirada na beira do rio Sena, em Paris, no ano de 1947 (ver Figura 1). Sempre se escreveu, sempre nos comunicamos, o que mudou foram as facilidades e a velocidade de divulgação da informação.

Figura 1 - Dactylo, Robert Doisneau, Paris 1947

Quando me lembro do esforço gigantesco que era datilografar um texto mais longo, não sinto nenhuma saudade destes tempos.

As minhas teses de Mestrado e Doutorado foram datilografadas em casa pela minha esposa em uma tarefa considerada tão heróica, que ao ser dado o último toque na última linha da tese de Doutorado, após as inúmeras versões corrigidas, fizemos uma comemoração com foto e tudo (ver Figura 2). Lembrando que freqüentemente as correções no texto implicavam em datilografar novamente capítulos inteiros.

Figura 2 - A Datilógrafa

Mas, felizmente a inteligência e a produção intelectual está acima de qualquer tecnologia, devendo o homem não se descuidar do desenvolvimento de raciocínios lógicos e intuitivos, princípios éticos e uma visão social e política, caso contrário, será uma massa passiva, manipulada pelos meios de comunicação patrocinados por interesses meramente comerciais que pululam por aí, em particular na Internet. O importante é usar as facilidades da informatização para o nosso aperfeiçoamento e não para um empobrecimento intelectual, com a perda da capacidade da escrita e da especulação (ver Novidade – Misoneistas e Neófonos, Anna Maria Ribeiro – Montbläat 268, 14 a 20 de dezembro de 2007).

Aqui faremos um passeio pela História da multimídia, comparando, de uma maneira divertida, os novos dispositivos tecnológicos, com as atualmente consideradas geringonças que os antecederam, mostrando que no fundo as diferentes gerações humanas são muito parecidas.

Rádio Galena, iPods e celulares
Enquanto os jovens de hoje se maravilham com seus caríssimos iPods, há cinqüenta anos se encantavam com o rádio galena, aquela pedra maravilhosa que ligada a um pedaço de arame – chamado de bigode de gato – e a um fone, obtido de sucata de telefone, permitia a sintonização de ondas de rádio. Era um fato fascinante e mágico tirar música de uma pedra, que era o sulfeto de chumbo natural, que foi usado na segunda guerra mundial como receptor elementar de ondas de rádio, sendo posteriormente substituído por semicondutores de germânio ou silício.
Os celulares de hoje, maravilha das comunicações, só eram conhecidos nas histórias de quadrinhos, onde o Detetive Dick Tracy falava em um rádio de pulso. Mas, em compensação tínhamos uma rede de rádio amadores que transmitiam notícias dos lugares mais remotos do planeta, providenciando salvamentos e fazendo denúncias.

Os jovens do passado também tinham os seus sonhos de consumo, como uma calça Lee ou a mais cobiçada que era a Levis Straus. No tocante a tecnologia o supra-sumo, dos universitários de áreas científicas ou tecnológicas eram as réguas de cálculo Aristo ou Faber Castell, consideradas umas das maravilhas da época, para intricados cálculos matemáticos, sendo hoje apenas uma relíquia disputada por colecionadores (ver Figura 3). Até hoje me lembro da minha primeira calculadora eletrônica, uma HP-45, presente de um ano de casamento, comprada em 12 prestações, com exigência de fiador e tudo.
Figura 3 - A régua de cálculo, uma das maravilhas dos calculistas

Epidiascópios e Retroprojetores
Hoje, diante de um moderno sistema de apresentação multimídia, onde um computador é conectado a um projetor óptico, possibilitando o uso de textos, sons, imagens e arquivos da Internet obtidos em tempo real, bem como animações feitas por programas de computador, não imaginamos a parafernália que usávamos no passado nas “modernas” apresentações com o uso do que na época chamávamos de “recursos audiovisuais”. Fotografias e quaisquer materiais impressos eram projetados pelos epidiascópios. Tinha também os microscópios de projeção e outros equipamentos, que seriam os precursores dos projetores de slides (ver Figura 4). Mais tarde apareceram os retroprojetores para transparências. Para o uso de sons e imagens eram usados gravadores de fita e projetores de filmes.

Figura 4 - Um dos precursores dos slides

Do Mimeógrafo a Xerox
Na divulgação de materiais impressos, durante muito tempo reinou o mimeógrafo a álcool e depois a modernidade colocou em nossas mãos o estêncil para mimeógrafos elétricos, onde os textos podiam ser batidos na máquina de escrever. Porém, a maior dificuldade era fazer figuras riscando com um estilete. Não dá nem para pensar hoje em dia quando usamos uma impressora.
As máquinas de escrever evoluíram muito, e algumas permitiam trocar as fontes, trocando uma esfera com os tipos, o que facilitava os trabalhos científicos quando tínhamos de usar letras gregas, que são os símbolos matemáticos. Mais tarde apareceram as máquinas de escrever com memória, a xerox e aí não paramos mais.

Pichações e o Spray
Hoje, com a tinta em spray sendo usada não só pelos artistas do grafite, como também por aqueles que irresponsavelmente emporcalham tudo, é difícil imaginar como podíamos escrever uma frase de protesto como, por exemplo:
ABAIXO A DITADURA

Para isto eram preparados lápis gigantes de aproximadamente 25 cm de comprimento e 5 cm de diâmetro, obtidos derretendo sebo, parafina e usando como corante o chamado pó de sapato, permitindo inscrições nas cores preta, azul ou vermelha. O problema era que o cheiro do sebo era uma prova irrefutável do crime político cometido. Nas colagens de cartazes usava-se o grude, que era uma cola doméstica feita com farinha de trigo ou polvilho, que era preparada em grandes quantidades, em baldes, para ser aplicado com vassouras, o que emporcalhava todo mundo. Enquanto hoje um internauta com um simples toque do mouse envia o seu protesto para o mundo inteiro, no passado tinha que se esgueirar pelas sombras da noite, todo lambuzado de parafina, grude e sebo para fazer o seu protesto chegar a muito poucas pessoas ou amargar uma prisão.

Cientistas e Contrabandistas
Enquanto a ditadura no Brasil impunha uma Lei de Reserva de Informática, que regulava a fabricação e importação destes itens de última tecnologia, cientistas brasileiros viravam contrabandistas, adquirindo ilegalmente circuitos digitais, que eram usados para construir os primeiros microcomputadores, usando televisões como monitores, gravadores de fitas magnéticos como memórias e teclados de máquinas de escrever elétricas ou de vários telefones, para a montagem final dos teclados dos chamados microcomputadores. Estes criativos cientistas-contrabandistas com muita dificuldade e trabalho publicavam seus estudos e deixavam sua colaboração para o saber universal.

Criatividade ou Alienação
Hoje tomamos conhecimento de que somente no ano de 2007 no Brasil foram vendidos 35 milhões de telefones celulares, sendo que quase 2 milhões apenas por ocasião do Natal, e que a maioria destas compras foram feitas por pessoas dirigidas pela propaganda que trocaram seus antigos aparelhos apenas em busca de uma luz piscante a mais. Estes fatos devem levar-nos a uma séria reflexão sobre a evolução da informática e das comunicações com o agravante de que estes mesmos consumidores ao fazerem os seus cadastros nas lojas, quando fornecem o número de seus CPFs podem constatar que os comerciantes já possuem todos seus dados pessoais, em um verdadeiro controle da privacidade das pessoas, como se a loja fosse uma sucursal da Receita Federal, mostrando que as nossas Leis, desde a Constituição Federal, passando pelo Código Civil e chegando até ao Código Penal, são letras mortas, o que é também reforçado pelo próprio governo federal quando apenas declara que um cidadão tem o seu imposto de renda na malha fina da Receita Federal, sem maiores informações, negando o elementar direito de saber de que se é acusado e o direito de defesa imediato. Outro fato grave é a corrida para a compra dos caríssimos conversores para a TV digital, por uma massa que age como zumbis, comandada pela mídia globalizada, obedecendo a um comando consumista em direção a uma tecnologia incipiente e não existente efetivamente. Esses fatos foram bem sintetizados por um cidadão da chamada terceira idade que ao se sentir ridicularizado por uma “moderninha” atendente de uma loja de informática, respondeu: É, você parece ser muito esperta para apertar estes botões coloridos, mas garanto que não sabe o valor da raiz cúbica de oito!

O perigo, portanto, do mundo informatizado é a geração de toda uma geração de analfabetos, sem raciocínio lógico, domínio da escrita, mas exímios apertadores de botões, que se consideram muito valorizados quando espalham informações de qualidade duvidosa pela Internet, tal qual aquele maníaco que escreve impropérios nas paredes dos lavatórios, protegido pelo anonimato dos banheiros públicos.

O bom uso das facilidades da informatização só será efetivo para um povo alfabetizado com conhecimentos de matemática, ciências, domínio da escrita e uma visão social. Caso contrário teremos uma mera carneirada, bem ao gosto dos políticos desonestos e dos mistificadores religiosos dos dias de hoje.
(Teócrito Abritta é físico, escritor e colunista do jornal eletrônico Montbläat (www.montblaat.com.br).

sábado, 6 de dezembro de 2008

Sonho. Sonhei

por Humberto Carneiro

Sonhei que era verdade, pensei em construirmos juntos muita coisa.
Construímos uma árvore de Natal. Ficou linda como ela, como o seu sorriso e a sua alegria.
Sonhei que ensinaria a dirigir. Ia ser muito divertido. Os erros seriam motivo de muitas alegrias e os acertos com certeza estímulos. Faria junto com ela vários testes simulados no computador para prepará-la a enfrentar o exame do DETRAN. Enfim tiraria a carteira de motorista. Iria dirigir e me ajudar quando necessário. Ia aprender a dirigir até carrinho de Supermercado... haha.
Sonhei que muitas vezes iria vê-la comer uma alcatra para dois e depois tomar sorvete. Íamos rir muito juntos.
Sonhei que faríamos muitas coisas. Iria ver um agradecimento e a preocupação com os gastos e ver nossos olhares lacrimejar entendendo que foi Deus que nos colocou próximo naquele momento.
Não pude dar a ela o Panetone que comprei e que estava na mala do carro. Ela desceu e disse que não disse. Só consegui vê-la andando com seu cabelo ‘pedra lascada’... haha. Não deu nem para tomar um café. Ela se foi. Voltará?

O telefone tilintou, pensei que fosse ela, o coração bateu mais forte. Atendi. Não era. Voltei decepcionado. Com o tempo me acostumo.

Sonhei que iria a Paraty. Ela iria gostar muito. Faríamos um passeio de barco. Visitaríamos lugares históricos. Poderia ir a Belo Horizonte. Ela ficaria com a família e eu iria a Savassi lembrar tempos passados. Depois voltaríamos juntos.
Sonhei mostrar Porto Seguro e adjacências. Ia amar. Voltaria sempre alegre com seu sorriso.
Poderia levá-la ao trabalho todos os dias e aproveitaria para dar uma volta na Lagoa e manter minha forma.
Sonhei que iria a Búzios e muitos outros lugares conviver com a alegria. Petrópolis e o Museu Imperial. Onde pudesse, levaria o sorriso dela.
Sonhei ver a alegria com o presente na árvore de Natal. Seríamos alegres.
Sonhei um dia morar junto.
Agora resta desconstruir a árvore de Natal em janeiro, desta vez sem o sorriso dela. Vou sentir muitas saudades. Difícil será desconstruir o amor que cresceu rapidamente.

(Humberto Carneiro nasceu em Curitiba e se formou em engenharia mecânica na Uerj.
É artista plástico e produz (muitos) contos nas horas vagas. Contista convidado para estreiar a nossa coluna Autor Convidado)

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Sô e Sô

por Charles do Nascimento

5h50min. Chove forte. Antes do despertador tocar, Solange pula da cama, livra-se do pesadelo e logo percebe, pelo barulho da rua, pois cada minuto da manhã tem um barulho diferente, que acertara mal o relógio. Na verdade, já são 6h10min. Dez a mais, era preciso correr para compensar o atraso. Sem tempo nem para se espreguiçar, corre para a cozinha e joga fora o resto de café. Lava cuidadosamente a cafeteira e prossegue o balé sincronizado das donas-de-casa. Pega mais pó de café no armário e liga o rádio para ouvir as primeiras notícias do dia. Hoje à noite vai ao ar o último capítulo da novela, quem sabe os jornais antecipam alguns detalhes...

Enquanto o café passa, ela corre para o quarto ainda escuro e pega o vestido amarrotado, jogado sobre a cadeira. “É bom não acender a luz, senão o César acorda, coitado! Ele trabalha o dia inteiro”. Às pressas, mas sem fazer barulho, passa correndo pelo quarto onde dormem os dois filhos. “Se acordarem, não faço mais nada”.

Na padaria, antes de abrir a boca, o português se antecipa, num tom de voz elevado.
– São seis pães franceses e um leite: R$ 3,30.
– Aumentou, seu Manoel?
– Tudo aumenta, por que o pão não haveria de aumentar?
O grosso de sempre.
– Então, amanhã eu trago os 30 centavos.
– Não esqueça. E aproveite para ver se não há cascos lá em sua casa...

Enxotada da rua pela chuva, Solange retorna a passos largos para casa. Prepara a mesa, passa manteiga no pão, ferve o leite. “Nossa! Já são 6h25min. Está passando da hora de acordar o César. Ainda bem que hoje é sexta-feira”. Uma sexta-feira especial. “Foi num 12 de maio como esse, há 20 anos, que começamos a namorar”. Até a celebração do casamento, passaram-se inacreditáveis 13 anos entre namoro e noivado. A data foi cuidadosamente escolhida por ela para coincidir com o início do namoro. Não haveria como o César esquecer. “Bobagem, homem não lembra dessas coisas”. Enfim, tudo bem, hoje ela está mais preocupada com outra coisa.

O amor esfria com o tempo. Hoje é o dia do último capítulo.

Solange retoma as atividades. O marido acorda praguejando contra a
chuva, toma banho, bebe o café sem se sentar à mesa e se despede.
– Até logo, Sô – diz o pai de seus filhos. E, como faz todas as sextas-feiras, vai de carro para o trabalho. Geralmente às sextas volta mais tarde. Ela abre o portão, aguarda ao menos um sorriso tímido que não vem e volta para as tarefas do lar. Sozinha, diante do rádio, estranha: “Não vão mesmo falar nada sobre a novela?”.

Um breve cochilo no sofá e já são 7 horas. Hora de acordar o Thiago, de 7 anos. Olha o velho relógio na parede da sala. “Nossa Senhora, de manhã o tempo voa!”. Thiago, para variar, não quer tomar banho. Pentear o cabelo é uma dificuldade; colocar o uniforme, outro parto.

7h50min. Ir a pé até à escola levará, em média, 15 minutos.
– Traz logo a droga do guarda-chuva. Se chegar atrasado de novo, a professora vai me chamar a atenção.

E sai com a dor de consciência de todos os dias: Matheus, um ano mais novo, ficará sozinho em casa por intermináveis 30 minutos.
Quando volta, a chuva já estiou. Solange aproveita o sono do caçula para colocar a lavagem de roupa em dia. No bolso do marido tem um papelzinho com um nome e número de telefone. “Sofia. Quem será? Nunca ouvi falar nessa mulher. Vou ligar”, decide. Mas volta atrás: “Melhor não. Quem procura acha. Que merda de pensamentos! E a novela, vão falar nisso ou não?”.

Finalmente toma um gole de café, mas aí o outro filho acorda, chorando de fome. O balé é retomado, manteiga no pão, leite fervido, é hora de ajudar o menorzinho nos estudos. Não deu para colocá-lo no mesmo turno do irmão.

12 horas. Matheus resiste ainda mais ao banho. Pentear o cabelo é uma dificuldade, vesti-lo, outro parto. Almoça já atrasado, a mãe novamente põe a roupa de sair. Cadê tempo de almoçar junto com o filho? A pé, o mesmo percurso da manhã. Ela repete:
– Se você também chegar atrasado, a professora vai me chamar a atenção
de novo.

Volta com o mais velho, serve o almoço, Thiago dorme, graças a Deus. Agora sim, ela vai ter tempo para si mesma. Si mesma? Varrer a casa, lavar o banheiro, guardar os brinquedos espalhados pela sala. E então toca o telefone.
– Essa porcaria desse telefone vai acordar o...

É da floricultura. Perguntam se é da casa do senhor César da Silva e Souza. É que ele passou um cheque, e o rapaz precisou confirmar alguns dados. Solange parece não acreditar. “Nossa, ele lembrou! Afinal, 20 anos não são 20 dias!”. E prepara o jantar especial: macarrão com frango. Ah, e um bolo de sobremesa. “Quem sabe dona Hermengarda pinta minhas unhas para eu pagar depois?”.

Ingredientes comprados, vai com o filho mais velho ao banco pagar contas atrasadas. Ela sai da agência às cinco da tarde, corre para buscar Matheus.

O tempo vai passando. Já são quase 9 horas e nada do marido. Entra a propaganda eleitoral gratuita. Crianças para a cama. E ela deita para descansar um pouco.
– Acorda Sô! Vai dormir na cama!

Duas da manhã.

– O bicho pegou lá no parque gráfico. Deu uma pane, as máquinas enguiçaram, os geradores pifaram e aquele filho da puta obrigou todo mundo a ficar até mais tarde. Depois fui com a rapaziada tomar uma cervejinha lá mesmo em Caxias.

Sofia também mora em Caxias. Não recebeu as flores, mas ainda assim foi uma trepada inesquecível. Um ano de namoro escondido do marido dela e da mulher dele. César teve sorte, também chama a amante de Sô. Nunca iria se confundir. A mulher jamais desconfiaria. E o rival não liga tanto para a mulher. O corno é jornalista, sabe de tudo, menos do dia 12 de maio, uma data que o César nunca esquece, qualquer dia vai lembrar o porquê disso...

De repente, lembra-se do cheque na floricultura. Só no trabalho viu que não tinha cobertura. Será que ligaram para sua casa? Não. Sô, ou melhor, Solange teria dito. De qualquer maneira, resolve sondá-la.
– Que cara de sono mais esquisita! Está preocupada com alguma coisa?

Só então é que a mulher se dá conta de que esquecera algo importantíssimo:
– Ai meu Deus! Será que vão reprisar o último capítulo logo mais?


(O texto faz parte do livro Parem as máquinas: jornalistas que valem mais de 50 contos, ed. Casa Jorge)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Não quero dar adeus ao Cine Paissandu...

por Ana Maria Chagas

Hoje de manhã recebi a ligação da amiga Magali Almeida e quando comecei a dar os parabéns pelo seu aniversário, ouvi a voz mais decepcionada do mundo:
- Ana, vão fechar o Paissandu! Como é que deixam isso acontecer?

O Cine Paissandu fica no bairro do Flamengo, RJ, onde Magali esteve presente na primeira sessão de apresentação do filme Casablanca que assistiu suspirando por Humphrey Bogart.

Foi tão triste quanto receber a notícia da morte de um parente. Juro.
Não quis acreditar.

Busquei a notícia no Google e encontrei a reportagem “A Última Sessão do Estação Paissandu” de Eduardo Fradkin (O Globo - 24/08/2008 05:00:09) dizendo que após 48 anos de existência fechará no dia 31 de agosto “(...) o cinema que formou, nos anos 1960, a Geração Paissandu, rótulo que agrupava jovens cinéfilos e intelectuais de esquerda incapazes de perder os longas de Jean-Luc Godard, Louis Malle, Michelangelo Antonioni, François Truffaut e outros cineastas autorais”.

Viram só? Sabe aquele tempo em que os jovens era mais antenados com os acontecimentos políticos e econômicos do país? Onde eles se reuniam? Cine Paissandu!

E daí se hoje a nova geração prefere o shopping?
Ah! Se eu pudesse ensinar aos jovens o quanto um filme de Truffaut, Kieslowski e tantos outros agregam para a formação do nosso pensamento crítico, nossa personalidade e da importância do “ser” em detrimento do “ter” tão valorizados nos enlatados americanos!

Eu que sempre me senti uma “excluída cultural” por não ter acesso à filmes estrangeiros e aos chamados “filmes alternativos” nos cinemas da Zona Norte do RJ, agora nem mesmo na Zona Sul.
E o que vão construir naquele terreno? Já não temos supermercados e igrejas demais?
Nada contra, mas além do pão para corpo e espírito, a população precisa de alimento para o raciocínio, para as novas experiências, cultura enfim.

Não quero dar adeus o Cine Paissandu.
Quero me encher de esperança de que no exato último instante - como nos filmes mais emocionantes da história – apareça a cavalaria chamada “patrocínio” e salve este maravilhoso patrimônio carioca.

Ah! Não resisto! Vou fazer um apelo:

"Empresários: uni-vos! Será que não existe nenhum empresário cinéfilo que possa ajudar na preservação e continuidade do nosso Cine Paissandu?"

domingo, 24 de agosto de 2008

Também quero brincar!

por Ana Maria Chagas


Vocês leram?
A Ieda nos convidou pra brincar!

Apresento pra vocês então meu dois xodós: Asterix e Calvin.


Tenho toda a coleção de revistas em quadrinhos do Asterix & Obelix desde menina, presenteada por meu pai. De vez em quando ainda tomo essa poção mágica de humor folheando uma delas. É revigorante e me dá uma força incrível.
E este Asterix veio da Europa (chique né?). Encomendei de uma amiga que foi à França.

Já o Calvin representa meu lado moleque e argumentador.
Sempre que preciso, olho pra ele e lembro daquela pergunta insistente que as crianças fazem e que não devíamos nunca abandonar ao crescer: "Por que não"?
Este aí comprei numa lojinha do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ).

Gostaria muito de ter também os pares de cada um: Obelix e Haroldo.

Pra não se sentirem sozinhos, coloquei juntos na minha prateleira.
Mas de vez em quando pulam pro computador. Olhem só :

Vamos lá Charles! É sua vez!

Começou a brincadeira e passei a bola pra você! >:op

sábado, 23 de agosto de 2008

Brasilidade

por Ieda de Oliveira

“(...)
Somos nós que fazemos a vida

Como der ou puder ou quiser
Sempre desejada
Por mais que esteja errada
Ninguém quer a morte
Só saúde e sorte
E a pergunta roda
E a cabeça agita
Eu fico com a pureza da resposta das crianças
É a vida, é bonita e é bonita
Viver, e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz
Ah meu Deus eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor e será
Mas isso não impede que eu repita
(a vida) É bonita, é bonita e é bonita.” (*)

Viver e não ter a vergonha de ser feliz (Gonzaguinha)
(*) grifo meu


Domingo acordei totalmente abrasileirada. Sintonizei na MPB FM e, sob o som de Vinícius, Simonal, Novos Baianos, Jobim, Elis, Jackson do Pandeiro entre outros não menos sensacionais, cantei e cantei e cantei. E não foi por causa do clima de medalhas, lutas, sangue e suor dos nossos atletas em Beijin, não (que, aliás, merecem aqui todo o meu carinho e palmas pelo empenho nestas Olimpíadas), mas devido à brasilidade que me abateu nesses últimos tempos.

Pois então, terminei de ler dois livros de Machado de Assis (confesso, ainda não tinha lido Dom Casmurro. Mas, mais do que nunca precisava saber, afinal, se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Querem a minha opinião? Depois eu digo em outra crônica, ok?) e emendei nos melhores contos de Rubem Braga. Sobrou um tempinho e li sobre cerca de 90 escritores estrangeiros, mas me impressionei e corri para ver a exposição da Clarice Lispector (a escritora ucraniana mais brasileira que o Brasil já teve) lá no CCBB, no Centro do Rio. Aproveitei e adquiri dois livros dela no mesmo dia. Mas hoje, segunda-feira, não resisti e entrei na Livraria da Travessa e comprei Doidas e Santas da Martha Medeiros, lançado semana passada.

E assim a pilha de livros vai aumentando. É preciso ser justa e manter a ‘ordem de chegada’. Mas já estou mal vista por eles (os livros). Se tivessem vida própria, já daria para ouvir as reclamações. “Lá vai ela pegar a Clarice... eu estou na fila há dois meses!” “Não, reclama, não, Saramago. E eu que estou aqui na fila desde 2006!” “Ah, tá, Luiz Fernando, quem me garante que ela não irá ler primeiro a Martha que comprou hoje”, observa Clarice. Ai, que vergonha...

Enquanto discorro sobre arte, cultura e a ‘grande descoberta’ de ser brasileira, reflito também sobre algo importante e de onde origina todo esse orgulho de ser brasileiro ou mesmo o prazer de viver, saber viver: os princípios e valores passados pelos nossos pais e pelos pais dos nossos pais e pelos pais destes. Penso e torço pelos homens e mulheres que diariamente acrescentam verdadeiros valores através de valiosas atitudes – pequenas ou grandes - e que deixam como herança – mesmo que ofuscada pelos valores vendidos por outras culturas – aos filhos, aos seus futuros homens.

A arte, a cultura, o trabalho, a religião, a dignidade sobrevivem através de poucos que estão aí... lutando para ver o mundo melhor. E o mundo melhor, não é aquele dia quando o sol está bonito lá fora e vai dar praia ou quando o Brasil ganha uma Copa do Mundo (tão patético exemplo), não. O mundo melhor é o seu! É aquele que você pode oferecer ao outro. É o mundo que você oferece a sua família, que a família oferece a sua comunidade, que a comunidade oferece ao seu bairro, que a oferece a sua cidade, que oferece ao seu estado, que oferece ao seu país, enfim, ao resto do mundo!

Portanto, o meu mundo melhor hoje é fazer uma boa leitura, indicar uma boa exposição que resgate mundos melhores do passado, ouvir um bom CD de chorinho (gravado na Lapa, hein!), dar uma ou duas voltas na Lagoa Rodrigo de Freitas, ou mesmo naquela pracinha simples perto de casa e comer um pastel que só lá se faz, ou escrever aqui o quanto eu desejo que o mundo seja sempre o melhor para você!

Nossos Betinhos

por Ieda de Oliveira



Saudades do Betinho (ver em 4/8/8) teve ótimos comentários. Uns foram a favor de um resgate cheio de estratégias da casa de minha sobrinha Alessandra, outros refletiam sobre os seus próprios ‘Betinhos’. Meninas e meninos quarentões que, no fundo, no fundo, ainda mantém seu 'betinho' guardado em casa – ou na casa dos pais, pelo menos.

Tais 'betinhos' podem estar representados através de uma coleção de miniaturas ou de um boneco do Star Trek ou do Falcon; ou de uma boneca Susie ou alguma mais antiga ainda; ou num anel achado numa caixa de sucrilhos. Podem estar representados na compra daquele almanaque dos anos 70, 80, 90 (até do Fusca!) ou daquele livro maravilhoso e inesperadamente encontrado numa feira de livros antigos...

Cada um tem o seu betinho da forma que melhor lhe fizer bem.

By the way, qual é o seu Betinho?

**



Betinho no aniversário de 25 anos da Alê, no dia 10.

Ieda

domingo, 17 de agosto de 2008

Olhares...

por Ana Maria Chagas

Vocês já observaram uma cena poética, original, por vezes indescritível e na hora H não tinha uma câmera fotográfica?

E quando uma cena diz muita coisa pra você, mas não adiantaria fotografar porque o sentimento é todo seu? Daí você quer contar pra alguém, mas as palavras parecem não conseguir exprimir todos os detalhes. Nem da cena observada, nem do seus sentimentos em relação a ela. E parece que o encanto pertenceu só aquele minuto e não pode ser repassado a ninguém.

Moro próximo à uma praça e da janela posso observar diariamente alguns momentos poéticos despertados pelas pessoas que a freqüentam, pelas árvores ao redor e pelos pássaros que moram nelas, como estes:

- O olhar do menino era como o céu ao escurecer misto de azul e o negro – e refletia a vitrine da loja onde, de nariz colado, fixava o pequeno caminhão de bombeiro exposto à venda. Sabia que o pai estava impaciente para ir embora, mas não podia perder nenhum detalhe do que passou a ser seu mais novo objeto de desejo infantil, para melhor relatar quando a zanga do pai já tivesse passado.

- O homem inquieto, a cada minuto olhava o relógio e ao redor. Era jovem, meio gorducho e, por vestir uma camisa larga sobre a bermuda comprida até aos joelhos, parecia baixo e atarracado. Um boné disfarçava um princípio de calvície e nos pés usava tênis já meio gastos. De repente, algo lhe desperta a atenção ao olhar. Retira o boné acertando os poucos fios rebeldes, alisa a camisa decidindo que ficaria melhor por dentro da bermuda e busca no banco onde estivera sentado uma rosa embalada em celofane. Recebe o abraço de uma moça mais alta e sorri como aliviado. Teria sido perdoado?

- Justamente no meio do inverno, uma pequena vegetação que vinha crescendo com galhos ressecados em meio a um pequeno canteiro mal tratado, resolveu florescer. Uma, duas...muitas flores amarelas. Localizada próximo ao movimento intenso de um ponto de ônibus, mesmo vestida pelo sol da manhã, ninguém a notou.

- Verão. Calor. A cabeceira da cama colocada embaixo da janela não foi proposital, mas por falta de espaço. E numa linda manhã ao despertar, vimos um pequeno beija-flor investigando o quarto. Nossa surpresa o assustou. Vimos que voltou ao ninho, no galho mais alto da antiga amendoeira do centro da praça e deve ter vindo apenas avaliar se havia perigo ao redor. Ou seria um simpático gesto de visita aos vizinhos?

Por favor, não me acusem de voyeurismo. Afinal, de médico, louco e voyeur todo mundo não tem um pouco?

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Rebobinamento digital

por Ieda de Oliveira

Esta semana, resolvi substituir o bloquinho de anotações pelo meu velho gravador. Em vez de ficar escrevendo, registrar as idéias para as minhas crônicas no tape. Na hora do almoço saí à cata de uma fita Cassette (ou K7, lembram?). Uma colega do trabalho foi logo me avisando: 'Você não vai encontrar...' Como não? Não acredito que as fitas Cassette já estejam todas abolidas, gente! Apesar de toda essa tecnologia nova, as fitas devem estar sendo vendidas em algum lugar. E os repórteres gravam com o quê, então?

A primeira loja, um laboratório fotográfico. A vendedora não entendeu a pergunta. 'É uma fita Cassette, aquela que a gente coloca num gravador e...' Eu estava praticamente fazendo mímicas e ela continuou sorrindo, ou melhor, continuou não entendendo do que se tratava exatamente.
Comecei a ficar preocupada. Não pelo fato de não encontrar mais a bendita fita, mas por começar a me sentir velha e ultrapassada. Já, meu Deus!? A situação lembrou os relatos do meu pai sobre gramofone, transistor de rádio, válvulas de televisão etc. E agora, eu aqui, passando pela mesma sensação que o coitado devia passar quando eu o olhava como se estivesse relatando sobre a vida em outro planeta; ou mesmo a minha mãe quando dizia que qualquer aparelho com mais de dois botões, nem precisava comprar para ela.

A segunda loja, uma mega store. Na minha opinião, ou esperança, como queira, ali eu encontraria, ao menos, algumas.
Um vendedor chamou o outro para ajudar. Precisava mesmo? Uma convenção começou a se formar:

- A senhora quer dizer gravadores com microfita, certo? - disse o segundo vendedor.

- Não, microfita é para secretária-eletrônica. Eu quero aquelas fitas maiores, tamanho padrão para gravador, gravador, sabem...?
– comecei de novo com as mímicas. - Não é fita pra vídeo, não, hein...

- Ah... então é o gravador digital.

- Gravador digital? Digital? Mas gravador digital não é aquele gravador de DVD, não? -
Será que se eu falasse do walkman, eles atinariam pra coisa ou ririam na minha cara?

- Não, este usa USB PDR180 ou RR-US450, depende do mod...
– informava o primeiro vendedor.

E pronto. O pânico se instalou de vez. Não entendi ou ouvi mais nada. Agora era real: eu estava vivendo em um mundo paralelo ao meu. Eu me senti um personagem de Além da Imaginação! Falava de algo que ninguém sabia do que se tratava!


E isso não é de agora. Na festa de vinte anos de formatura, em 2006, a filha de um ex-colega de faculdade ficou impressionada por não existir celular na nossa época: 'Como os caras faziam para avisar às namoradas que estavam chegando e que era pra descer?' Humm... Sabe que não me lembro mais!
É... só sei dizer que de lá para cá comecei a ficar receosa. Para mim, ainda era cedo para preocupações com a idade; eu recém-chegada à casa dos 40. Mas agora a coisa estava ficando, digamos, mais pesada para o meu lado.

Mas é fato. Adaptação é a palavra de ordem. Como no exemplo clássico daquele torneiro-mecânico que se preocupava em perder o emprego para um robô, que certamente tomaria o seu lugar porque tinha tecnologia capaz de desenvolver as tarefas diárias de maneira bem mais rápida que o ser humano. Foi aí que alguém sugeriu ao operário que aprendesse a manejar o robô para se manter no mercado. Nada mais acertado a ser feito: se adaptar às novas metodologias de trabalho. No meu caso, às novas mídias de comunicação.

O avanço da tecnologia ganha cada vez mais espaço na vida da gente. Mesmo que queiramos fugir ou bater o pé 'que nem o celular' vai usar, a tecnologia ainda vai te 'pegar'. Ainda outro dia mesmo, um amigo foi ao Ministério da Fazenda e para ser atendido precisava de senha. 'Claro, aonde pego?' 'Pela internet, no site da Fazenda.' É isso: senha pelo site. E quem não tem acesso a computador...

Resistente (puxou ao pai), ontem eu me peguei pesquisando no Google por modelos de gravadores... digitais. Adaptação, ainda que tardia...


PS.: Depois de ir a mais três lugares naquele dia, encontrei as fitas K7 em uma lojinha pertinho do trabalho. Se alguém aí quiser o endereço...

E apenas por curiosidade arqueológica:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassete
http://www.tapedeck.org/

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Lar, doce bar

por Charles do Nascimento

O grande Moacyr Luz, sambista da primeira grandeza, está fazendo sucesso também no mercado editorial com a obra Manual de sobrevivência nos butiquins mais vagabundos. O livro estimula a reflexão sobre as práticas e tradiçõesno Rio de Janeiro, com base nos hábitos e comportamentos que caracterizama maneira própria de ser do cidadão carioca. A publicação, um relato importantesobre a memória cultural do Rio de Janeiro, reúne depoimentos e registra aspectos da cidade e os valores de uma cultura muito peculiar, que ainda influencia o resto do país.

Em outro livro (Meu lar é um botequim) Eduardo Goldenberg rende homenagemaos botequins mais vagabundos (e irresistíveis) da Tijuca e de Vila Isabel, bairros da zona norte onde o autor nasceu e foi criado, respectivamente. Outras publicações pegaram carona no mesmo mote e estão 'pipocando' por aí. A própria prefeitura municipal, há alguns anos, patrocina a publicação de um guia sobre os melhores botecos do Rio.

O redator-que-vos-fala também não resiste a um bom pé sujo. E ao longo de três décadas de freqüência assídua (sobretudo antes do matrimônio), coleciona histórias saborosas para compartilhar com os amigos próximos e os amigos de ocasião. Uma delas foi contada recentemente, pelo próprio Moacyr Luz, durante um bate papo em Santa Tereza.

O autor de Saudades da Guanabara conta que, segundo a lenda, o cliente teria chegado a um bar, olhado a vitrine e escolhido o salgado a seu gosto.

- Eu quero aquele quibe. - disse o cidadão, com ar um tanto autoritário.
Sem perder a pose, o português por detrás do balcão respondeu prontamente:
- Que quibe porra nenhuma!.
Com um pano de prato pra lá de encardido, espantou as moscas da vitrine e retrucou:
- Isso aqui é ovo cozido, vai querer ou não?

Se fossemos fazer uso deste espaço para narrar histórias e anedotas de botequim, esse blog seria pequeno. Mas uma tendência estranhamente moderna é dignade nota: a idéia recorrente de os novos proprietários 'modernizarem' alguns dos mais tradicionais pés-sujos da cidade. A novidade, que começou pelos estabelecimentos mais famosos do centro e da zona sul, está se estendendo para botecos bem mais modestos, situados em bairros mais distantes. Pois fica aqui um protesto! Freqüentador de verdade não tolera botequim de grife. Esses bem limpinhos, metidos a besta que reúnem mauricinhos, patricinhas e pseudos-intelectuais de ocasião. Em geral, cobram um preço exorbitante e a comida não presta.

Em tempos de globalização, essa tendência chegou também à longínqua e aprazível Vila da Penha, Zona Norte do Rio. O próprio redator-que-vos-fala foi vítima. Após um dia exaustivo de trabalho (e qualquer trabalho é exaustivo), embarcou no ônibus da linha 350? Passeio-Irajá. Até chegar ao destino, a 28 Km dedistância, foi necessário ficar 1h30 esmagado entre mais de 120 passageiros.

Como ninguém é de ferro, antes de começar a segunda jornada de 'tarefas' no seu sacro santo lar, resolveu dar uma paradinha 'tudo muito rápido' no bar em frente ao ponto de ônibus. E eis que para minha surpresa um dos meus pés-sujos prediletos desapareceu. Como num passe de mágica, simplesmente virou pé limpo. Agora foi todo reformado, pintado, ganhou balcão de madeira, piso branco, mesas de granito etc e tal. No cardápio, hambúrguer, hot dog, açaí com granola. O banheiro está mais cheiroso do que o lá de casa... Enfim, ficou tudo uma grandessíssima merda!

O empresário que financia um absurdo desta monta, na realidade não reconhece o verdadeiro papel social do seu negócio. E fica aqui a nota de desagravo. Salvem os últimos pés sujos remanescentes, que deveriam ser tombados como patrimônio cultural da cidade! A cantora Alcione, em uma de suas mais brilhantescomposições, faz um relato definitivo:

Mesa de bar
É lugar para tudo que é papo da vida rolar
Do futebol, até a danada da tal da inflação
É coração, fantasia e realidade
É um ideal paraíso adonde nós fica a vontade

Mesa de bar
É cerveja suada matando a pau o calor
Vamos cantar aquela cantiga que fala da luta e do amorMas antes brindar em homenagemAqueles que já não vem mais
Saúde pra gente, moçada, que a gente merece demais

Em torno de um copo a gente inventa um mundo melhor
A dona birita levanta a moral de quem está na pior
A água da mágoa se enxuga no pano daquela toalha
Pra acabar com a tristeza
Esse remédio não falha

Na mesa de um bar todo mundo é sempre o maior
Todo mundo derrama as tintas da sua alegria
Copos batendo na festa da rapazeada
Se bem que a gente não esquece que a barriga anda meio vazia

É que mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade
Companheiros em pleno exercício de democracia
Mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade
E companheiros em pleno exercício de democracia

sábado, 9 de agosto de 2008

Dia das meias (ou melhor, dos Pais)

por Ieda de Oliveira

Eu me lembro das comemorações aos Dias dos Pais na época de menina, ainda na escola pública, época na qual os nossos pais eram sempre surpreendidos com um presente inusitado: um par de meias! Ehhh! Invariavelmente, a lembrancinha era grudada em alguma figura, cujo formato lembrasse uma bola, gravata ou sapato recortados em cartolina. Não havia outra coisa para dar de presente aos pais: eram meias, meias ou... meias! Todo ano! Mas justiça seja feita, ao menos as cores variavam. Ou eram beges, brancas (as minhas preferidas), pretas, listradas... As meias procriavam. Acho até que a minha mãe estocava pares e mais pares de meias. Pois, no ano seguinte, com toda certeza, a escola pediria às mamães para levarem um (novo) par para que o pimpolho pudesse 'surpreender' o papai no segundo domingo de agosto. Pior talvez fosse para os pais de filhos que estavam em creches e que recebiam alguma coisa não identificada feito à mão – chique, né! – e pintado de modo a provocar inveja a qualquer artista plástico vanguardista.
E no grande dia, então, cabia aos queridos homenageados exibirem o seu melhor sorriso e deixarem aflorar todo o talento de ator para externar o ar de surpresa ao ser agraciado com (mais) um par de meias do filhão – no caso do ‘seu’ Evilásio, da filhona aqui.

Mesmo quando garotinha, eu ficava cismada com as escolhas da escola no quesito lembrancinhas. Meias? De novo? Como meu pai, eu me surpreendia todo ano com esta escolha. Pô, achava a maior falta de criatividade presenteá-lo com (mais) um par de meias. Seria a minha mãe realmente cúmplice dessa tramóia escolar?? Não lembro de vê-la entregar par de meias algum à professorinha... Será que os homens não gostam de outra coisa? Será que não apreciariam receber algo diferente? – eu me questionava. Não era possível que um pai realmente amasse tanto receber (mais) um par de meias e, ainda assim, externassem aquela alegria e surpresa que sempre nos convencia ser de muita satisfação.

E era realmente... satisfação.

Não eram as meias de marcas desconhecidas ou – quando a escola raramente variava – o pente Flamengo ou o lenço Presidente que deixavam os nossos pais tão felizes. Era o carinho, somado à inocência dos seus filhos aos lhes presentearem com algo tão simples. Qualquer algo. Fossem meias, lenços, pedras pintadas ou mãozinhas coreografando um pôster. O que os faziam de fato felizes era ser pai e ver o brilho nos olhinhos dos filhos ao homenagear o cara mais importante da vida deles.

"Ah, meu filho... não precisava!" E não precisava mesmo, acredite. "Me basta o seu carinho, o seu amor e a sua presença...!" É verdade. É a mais pura verdade. A gente não acredita quando somos filhos. Mas quando nos tornamos pais, (re) descobrimos que os melhores presentes de um filho são os reais sentimentos demonstrados por eles. O orgulho de receber de volta os valores e o amor passados desde o nascimento.

Mas muitos anos me separam daquelas meias de marcas desconhecidas. Os presentes evoluíram e o meu ‘velho’ mais ainda como pai. Ainda lembro do dia em que ele chegou e me disse com a voz levemente embargada: "Minha filha, a partir de hoje eu serei o seu pai e a sua mãe..." e me abraçou chorando. Foi a maneira que encontrou de me informar da partida de sua companheira de quatro décadas, há quase 17 anos. E até hoje, com saudáveis 82 anos de idade, dá conta dessa promessa! Mais presente do que nunca na vida dos três filhos. Como pai, superou as próprias expectativas. Está sempre repetindo para quem quer que seja que os filhos são o seu esteio. Mal sabe que ELE é o nosso esteio. Diante dele, ainda nos sentimos adolescentes dependentes da segurança e do apoio paterno. Acredito que ele ainda nos veja, literalmente, como crianças e não como 'coroas' na casa dos quarenta e cinqüenta e poucos anos. O 'velho' ainda segura as nossas mãos e nos recomenda atenção ao atravessar as ruas, fechar as portas e janelas ao se deitar e evitar estranhos que nos abordam. E toda noite, reza para a Nossa Senhora de Aparecida pelos pimpolhos das meias de sua eterna e extensa coleção.

Feliz Dia dos Pais a todos!

Feliz Dia dos Pais, pai!

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ô pai!

por Ana Maria Chagas

Ah! Lá vem mais uma comemoração do Dia dos Pais e eu aqui com muita saudade do meu.
Ô pai! Como gostaria de poder andar no seu carro novamente pelas ruas do Rio, com você ao volante, parar num sinal, vê-lo apertar o botão que aciona o “limpa- vidros” desregulado, fazendo a água espirrar como um chafariz na direção da vítima parada ao nosso lado com a janela do carro aberta, fingir não olhar e manter-nos sérios até estarmos bem longe para enfim soltar gargalhadas ao vento.

Ele adorava dirigir, mas por causa da idade, foi se tornando distraído ao volante se envolvendo ocasionalmente em pequenos acidentes que o aborreciam muito, mas nos divertiam muito mais. Uma vez, em meio ao trânsito próximo ao Norte Shopping, na Zona Norte do RJ, não freou a tempo e esbarrou de leve no pára-choque do carro que estava à sua frente. Talvez por se tratar de um zero quilômetro ou por imaturidade, o motorista saiu do automóvel, olhou para o pára-choque irado e disse:

- Vai ter que pagar! Eu sou advogado! Eu sou advogado!
E meu pai com toda a calma que seus cabelos brancos lhe ensinaram respondeu:
- Não tenho dinheiro pra te pagar não! Eu sou aposentado! Eu sou aposentado!

Além de brincalhão, esse velhinho era também muito corajoso. Aos 70 anos de idade, lembro do assalto à mão armada que sofreu em 1999. Num gesto insano de defesa de seu patrimônio mais querido - um Passat 1975 – ele reagiu à ordem de entregar o automóvel para o sujeito armado sentado ao seu lado, acelerando ainda mais a velocidade e entrando na contra-mão da Avenida dos Democráticos, no bairro de Bonsucesso - RJ onde morava, lutando com o assaltante pela posse do volante até chegar ao final desta mesma avenida onde havia uma delegacia. E com uma perícia de causar inveja aos filmes de James Bond, subiu a calçada freando bruscamente, fazendo correr os policiais que ali estavam e o próprio assaltante que abandonou o carro às pressas sem olhar para trás.

Após esta overdose de adrenalina, para minha angústia, recebi seu telefonema contando a aventura da noite e de tão excitado, nem ouvia minhas súplicas pra que viesse dormir na minha casa:

- Ô pai! E se o ladrão voltar aí pai?, disse eu.
- Por isso mesmo que tenho que ficar aqui, ué! Ele pode voltar!
- Ô pai! Deixa de ser teimoso!

Mas na manhã seguinte me visitou, aparentando medo. Parecia um menino que fez algo de muito errado. Ouviu minhas repreensões, fez cara de arrependido e depois me contou com todos os detalhes o que poderia ter sido mais uma tragédia daquelas que lemos quase que diariamente nos jornais.

Perdoem-me amigos leitores. Pensando em escrever algo interessante para vocês hoje, só conseguia pensar em como ando doída de saudade.
Saudade do barrigão difícil de contornar com os braços, dos ombros de travesseiro, dos cabelos de neve e dos lindos olhos castanhos esverdeados que diziam mais do que qualquer palavra.
Eram seus olhos que comunicavam seus sentimentos.
Durante sua existência na Terra, presenciei neles alegrias, mágoas, preocupações e tristeza, mas não me recordo de vê-los com raiva de ninguém. Por mais zangado que estivesse por fora, os olhos mostravam que já havia perdoado por dentro.

Creio que sabia que não adiantava querer convencer a menina rebelde e metida à sabe-tudo que fui (fui?) com palavras, então simplesmente ficava olhando – divertido ou preocupado - meu descontrole emocional (e hormonal!) periódico de adolescente.
Acredito na vida após a morte e que um dia iremos nos reencontrar, mas isso não evita que eu sofra pelas coisas não ditas. Ah! As coisas que eu não te disse. Já são mais de três anos que relaciono todos os assuntos e sentimentos que deveria ter compartilhado e as diversas formas de declarar amor que deveria ter expressado melhor a você enquanto presente fisicamente. Será que consegue mesmo sentir isso tudo onde está agora?

Foi muito dolorido vê-lo partir, porém hoje acredito que, por seu espírito ter continuado muito jovem e repleto de energia, já não cabia mais naquele corpo físico tão envelhecido. Foi preciso então despi-lo, assim como despimos as roupas que já não precisamos mais, e assumir um novo corpo mais forte: o corpo espiritual e eterno por meio do qual continuamos nossa jornada de evolução e trabalho junto ao Grande Arquiteto do Universo.

Ô pai! Se pode mesmo me ouvir, saiba que te amarei pra sempre.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Saudades do Betinho

por Ieda de Oliveira

Quando eu tinha dez anos de idade, a nossa escola levou os alunos para conhecer o Regimento de Polícia Montada da PM, em Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro. Foi o acontecimento: passeio de ônibus, bagunça... E o mais importante: ficar sem aula.

Um militar nos acompanhou pelos quatro cantos, explicando tudo o que víamos.
Depois de falar sobre a história do Regimento, raças de cavalo, patentes, ordem e progresso, o martírio de três horas chegou ao final com uma surpresa para a molecada: um brinquedo e um livrinho infantil!
Obviamente o brinquedo dos meninos foi uma bola colorida. E o das meninas, claro!, uma... um boneco? “Ei... eu recebi um boneco!”, retruquei. As sacolas para as meninas tinham sido distribuídas fechadas. Portanto, não dava para ver o que havia dentro: boneca ou boneco.

Eu não gostei nada, nada. Fiz de tudo para trocar o tal boneco. Em vão. Ninguém queria trocar uma bonequinha linda, toda rosinha e de lacinho na cabeça por um boneco que segurava uma bolinha de futebol. E já tinha até menina batizando a boneca de Rita de Cássia – o equivalente a Maria Eduarda hoje.

Frustrada, levei o meu bonequinho de borracha (de pijama e bonezinho azuis) para casa e dei o nome de Betinho.
Betinho morou em todos os cantos do meu quarto. Perto da janela, perto dos livros, dentro de gavetas. Sumia por uns tempos e ressurgia num cantinho qualquer.
O tempo foi passando e, naturalmente, fui me desfazendo dos meus brinquedos. Mas nunca desfiz do Betinho, que me viu crescer, me tornar adolescente, dançar aquela música barulhenta na frente do espelho, chorar pelo primeiro amor, estudar para o vestibular e festejar o primeiro emprego. Foi um companheiro silencioso.


Quando eu tinha dezenove anos, a nossa família cresceu: nasceu a minha primeira sobrinha. A minha irmã e o marido trabalhavam e deixavam o bebê lá em casa para a minha mãe tomar conta. Nessa época, eu já trabalhava e estudava à noite.

Depois de algum tempo, dei por falta do Betinho. Ele não estava no seu lugar de costume (que por me aturar durante anos, enfim havia conquistado um lugar fixo e de honra).

- Ah, o bonequinho Betinho... Tá com a Alessandra.
- O queee?!
- Só assim ela pára de chorar e me dá descanso.
- Caramba, mãe... Dar biscoito para ela não resolve mais não?

Por eu não ser mais criança, a minha mãe não via sentido, depois de velha, em manter brinquedos e, portanto, não via problema em dar o tal boneco para distrair a neta. E , por outro lado, eu não tinha coragem de dizer que estava com ciúmes do (meu) brinquedo.

Ver o Betinho sendo sacudido e jogado para lá e para cá me doía mortalmente o coração. Era como ver a aflição daquele gatinho nas mãos da Felícia ou do cowboy Wood sendo estraçalhado pelo cachorro do vizinho! Mas a minha mãe me garantia que ela brincaria direitinho. É... mas certa vez a vi mordendo sem piedade o pompom do boné do Betinho! Eu quase sofri um infarto. Tive vontade de tomá-lo das mãos dela; resgatá-lo daqueles dentinhos afiados antes que fosse tarde. E foi o que eu fiz: para evitar o berreiro, a subornei com dois biscoitos Maria da Piraquê.


Quando eu tinha vinte e cinco anos, já ocupada demais, vi o (meu) Betinho enfeitando o quarto da Alessandra. Minha irmã me revelou que a filha era simplesmente apaixonada pelo bonequinho!
Matutei, matutei... Mas tirar brinquedo de uma menina de seis anos seria mais difícil... Ela não seria mais facilmente 'comprada' com um biscoito de novo.... Talvez um Trakinas...!

Nos anos seguintes, o Betinho morou em todos os cantos do quarto dela. Perto da janela, perto dos livros, dentro de gavetas. Sumia por uns tempos e ressurgia num cantinho qualquer. O tempo foi passando e, naturalmente, a Alesssandra foi se desfazendo de seus brinquedos, mas nunca se desfez do Betinho. Betinho a viu crescer, se tornar adolescente, dançar aquela música barulhenta na frente do espelho, chorar pelo primeiro amor, estudar para o vestibular e se formar.

No próximo domingo, Dia dos Pais, a Alessandra completa vinte e cinco anos de idade. Ocupada demais. Mas até hoje o Betinho tem o seu lugar de honra aonde quer que ela esteja.


Ainda há uma disputa velada quanto à posse do Betinho. Ela sabe que ele é meu por direito. E eu sei que ele é dela por herança. Ainda tenho ciúmes dele. Embora eu não veja dessa forma, temo parecer demasiadamente infantil e, portanto, evito discutir ‘os direitos’ sobre o Betinho em família.

Em sua crônica sobre mulheres que ainda mantém os seus bichos de pelúcia, a escritora Martha Medeiros cita um comentário do professor de filosofia Amílcar Bernardi: “o bicho de pelúcia (no caso, o Betinho) é a ligação da mulher com sua inocência perdida. O bicho de pelúcia é a materialização da sua feminilidade em um mundo onde ela foi obrigada a rugir para se dar bem. O bicho de pelúcia é a sua virgindade preservada, seu lado Sandy, a sua síndrome de Peter Pan: o espelho do quarto diz que ela está envelhecendo, enquanto que os bichinhos de pelúcia em cima da cama dizem não.”

Talvez somente agora, ao ler o comentário, eu compreenda melhor a razão pela qual, de vez em quando, preciso ver o Betinho ou ter notícias dele.

Quando me reencontra, ele vê passar toda a minha história diante dos seus olhos. Quando o reencontro, vejo passar aquela menina de dez anos.

- É... ainda estou por aqui, Betinho!

Ele sorri para mim.