segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Saudades do Betinho

por Ieda de Oliveira

Quando eu tinha dez anos de idade, a nossa escola levou os alunos para conhecer o Regimento de Polícia Montada da PM, em Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro. Foi o acontecimento: passeio de ônibus, bagunça... E o mais importante: ficar sem aula.

Um militar nos acompanhou pelos quatro cantos, explicando tudo o que víamos.
Depois de falar sobre a história do Regimento, raças de cavalo, patentes, ordem e progresso, o martírio de três horas chegou ao final com uma surpresa para a molecada: um brinquedo e um livrinho infantil!
Obviamente o brinquedo dos meninos foi uma bola colorida. E o das meninas, claro!, uma... um boneco? “Ei... eu recebi um boneco!”, retruquei. As sacolas para as meninas tinham sido distribuídas fechadas. Portanto, não dava para ver o que havia dentro: boneca ou boneco.

Eu não gostei nada, nada. Fiz de tudo para trocar o tal boneco. Em vão. Ninguém queria trocar uma bonequinha linda, toda rosinha e de lacinho na cabeça por um boneco que segurava uma bolinha de futebol. E já tinha até menina batizando a boneca de Rita de Cássia – o equivalente a Maria Eduarda hoje.

Frustrada, levei o meu bonequinho de borracha (de pijama e bonezinho azuis) para casa e dei o nome de Betinho.
Betinho morou em todos os cantos do meu quarto. Perto da janela, perto dos livros, dentro de gavetas. Sumia por uns tempos e ressurgia num cantinho qualquer.
O tempo foi passando e, naturalmente, fui me desfazendo dos meus brinquedos. Mas nunca desfiz do Betinho, que me viu crescer, me tornar adolescente, dançar aquela música barulhenta na frente do espelho, chorar pelo primeiro amor, estudar para o vestibular e festejar o primeiro emprego. Foi um companheiro silencioso.


Quando eu tinha dezenove anos, a nossa família cresceu: nasceu a minha primeira sobrinha. A minha irmã e o marido trabalhavam e deixavam o bebê lá em casa para a minha mãe tomar conta. Nessa época, eu já trabalhava e estudava à noite.

Depois de algum tempo, dei por falta do Betinho. Ele não estava no seu lugar de costume (que por me aturar durante anos, enfim havia conquistado um lugar fixo e de honra).

- Ah, o bonequinho Betinho... Tá com a Alessandra.
- O queee?!
- Só assim ela pára de chorar e me dá descanso.
- Caramba, mãe... Dar biscoito para ela não resolve mais não?

Por eu não ser mais criança, a minha mãe não via sentido, depois de velha, em manter brinquedos e, portanto, não via problema em dar o tal boneco para distrair a neta. E , por outro lado, eu não tinha coragem de dizer que estava com ciúmes do (meu) brinquedo.

Ver o Betinho sendo sacudido e jogado para lá e para cá me doía mortalmente o coração. Era como ver a aflição daquele gatinho nas mãos da Felícia ou do cowboy Wood sendo estraçalhado pelo cachorro do vizinho! Mas a minha mãe me garantia que ela brincaria direitinho. É... mas certa vez a vi mordendo sem piedade o pompom do boné do Betinho! Eu quase sofri um infarto. Tive vontade de tomá-lo das mãos dela; resgatá-lo daqueles dentinhos afiados antes que fosse tarde. E foi o que eu fiz: para evitar o berreiro, a subornei com dois biscoitos Maria da Piraquê.


Quando eu tinha vinte e cinco anos, já ocupada demais, vi o (meu) Betinho enfeitando o quarto da Alessandra. Minha irmã me revelou que a filha era simplesmente apaixonada pelo bonequinho!
Matutei, matutei... Mas tirar brinquedo de uma menina de seis anos seria mais difícil... Ela não seria mais facilmente 'comprada' com um biscoito de novo.... Talvez um Trakinas...!

Nos anos seguintes, o Betinho morou em todos os cantos do quarto dela. Perto da janela, perto dos livros, dentro de gavetas. Sumia por uns tempos e ressurgia num cantinho qualquer. O tempo foi passando e, naturalmente, a Alesssandra foi se desfazendo de seus brinquedos, mas nunca se desfez do Betinho. Betinho a viu crescer, se tornar adolescente, dançar aquela música barulhenta na frente do espelho, chorar pelo primeiro amor, estudar para o vestibular e se formar.

No próximo domingo, Dia dos Pais, a Alessandra completa vinte e cinco anos de idade. Ocupada demais. Mas até hoje o Betinho tem o seu lugar de honra aonde quer que ela esteja.


Ainda há uma disputa velada quanto à posse do Betinho. Ela sabe que ele é meu por direito. E eu sei que ele é dela por herança. Ainda tenho ciúmes dele. Embora eu não veja dessa forma, temo parecer demasiadamente infantil e, portanto, evito discutir ‘os direitos’ sobre o Betinho em família.

Em sua crônica sobre mulheres que ainda mantém os seus bichos de pelúcia, a escritora Martha Medeiros cita um comentário do professor de filosofia Amílcar Bernardi: “o bicho de pelúcia (no caso, o Betinho) é a ligação da mulher com sua inocência perdida. O bicho de pelúcia é a materialização da sua feminilidade em um mundo onde ela foi obrigada a rugir para se dar bem. O bicho de pelúcia é a sua virgindade preservada, seu lado Sandy, a sua síndrome de Peter Pan: o espelho do quarto diz que ela está envelhecendo, enquanto que os bichinhos de pelúcia em cima da cama dizem não.”

Talvez somente agora, ao ler o comentário, eu compreenda melhor a razão pela qual, de vez em quando, preciso ver o Betinho ou ter notícias dele.

Quando me reencontra, ele vê passar toda a minha história diante dos seus olhos. Quando o reencontro, vejo passar aquela menina de dez anos.

- É... ainda estou por aqui, Betinho!

Ele sorri para mim.

5 comentários:

Unknown disse...

Ma-ra-vi-lho-so!

Sandra Ronca disse...

Ieda! Sério! Pega logo esse Betinho e leva pra tua casa!
Quer que eu te ajude?

Anônimo disse...

Bota o Betinho num pacote... Depois desembrulha e não esquece do que tem dentro!

Rogério Macedo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rogério Macedo disse...

As meninas tem "Betinhos" porque crescem, são obrigadas a crescer, já os meninos não, porque simplesmente vão trocando de brinquedos, sem jamais se preocupar se são infantis ou não, minha coleção de miniaturas de StarTrek que o diga...