terça-feira, 30 de setembro de 2008

Sô e Sô

por Charles do Nascimento

5h50min. Chove forte. Antes do despertador tocar, Solange pula da cama, livra-se do pesadelo e logo percebe, pelo barulho da rua, pois cada minuto da manhã tem um barulho diferente, que acertara mal o relógio. Na verdade, já são 6h10min. Dez a mais, era preciso correr para compensar o atraso. Sem tempo nem para se espreguiçar, corre para a cozinha e joga fora o resto de café. Lava cuidadosamente a cafeteira e prossegue o balé sincronizado das donas-de-casa. Pega mais pó de café no armário e liga o rádio para ouvir as primeiras notícias do dia. Hoje à noite vai ao ar o último capítulo da novela, quem sabe os jornais antecipam alguns detalhes...

Enquanto o café passa, ela corre para o quarto ainda escuro e pega o vestido amarrotado, jogado sobre a cadeira. “É bom não acender a luz, senão o César acorda, coitado! Ele trabalha o dia inteiro”. Às pressas, mas sem fazer barulho, passa correndo pelo quarto onde dormem os dois filhos. “Se acordarem, não faço mais nada”.

Na padaria, antes de abrir a boca, o português se antecipa, num tom de voz elevado.
– São seis pães franceses e um leite: R$ 3,30.
– Aumentou, seu Manoel?
– Tudo aumenta, por que o pão não haveria de aumentar?
O grosso de sempre.
– Então, amanhã eu trago os 30 centavos.
– Não esqueça. E aproveite para ver se não há cascos lá em sua casa...

Enxotada da rua pela chuva, Solange retorna a passos largos para casa. Prepara a mesa, passa manteiga no pão, ferve o leite. “Nossa! Já são 6h25min. Está passando da hora de acordar o César. Ainda bem que hoje é sexta-feira”. Uma sexta-feira especial. “Foi num 12 de maio como esse, há 20 anos, que começamos a namorar”. Até a celebração do casamento, passaram-se inacreditáveis 13 anos entre namoro e noivado. A data foi cuidadosamente escolhida por ela para coincidir com o início do namoro. Não haveria como o César esquecer. “Bobagem, homem não lembra dessas coisas”. Enfim, tudo bem, hoje ela está mais preocupada com outra coisa.

O amor esfria com o tempo. Hoje é o dia do último capítulo.

Solange retoma as atividades. O marido acorda praguejando contra a
chuva, toma banho, bebe o café sem se sentar à mesa e se despede.
– Até logo, Sô – diz o pai de seus filhos. E, como faz todas as sextas-feiras, vai de carro para o trabalho. Geralmente às sextas volta mais tarde. Ela abre o portão, aguarda ao menos um sorriso tímido que não vem e volta para as tarefas do lar. Sozinha, diante do rádio, estranha: “Não vão mesmo falar nada sobre a novela?”.

Um breve cochilo no sofá e já são 7 horas. Hora de acordar o Thiago, de 7 anos. Olha o velho relógio na parede da sala. “Nossa Senhora, de manhã o tempo voa!”. Thiago, para variar, não quer tomar banho. Pentear o cabelo é uma dificuldade; colocar o uniforme, outro parto.

7h50min. Ir a pé até à escola levará, em média, 15 minutos.
– Traz logo a droga do guarda-chuva. Se chegar atrasado de novo, a professora vai me chamar a atenção.

E sai com a dor de consciência de todos os dias: Matheus, um ano mais novo, ficará sozinho em casa por intermináveis 30 minutos.
Quando volta, a chuva já estiou. Solange aproveita o sono do caçula para colocar a lavagem de roupa em dia. No bolso do marido tem um papelzinho com um nome e número de telefone. “Sofia. Quem será? Nunca ouvi falar nessa mulher. Vou ligar”, decide. Mas volta atrás: “Melhor não. Quem procura acha. Que merda de pensamentos! E a novela, vão falar nisso ou não?”.

Finalmente toma um gole de café, mas aí o outro filho acorda, chorando de fome. O balé é retomado, manteiga no pão, leite fervido, é hora de ajudar o menorzinho nos estudos. Não deu para colocá-lo no mesmo turno do irmão.

12 horas. Matheus resiste ainda mais ao banho. Pentear o cabelo é uma dificuldade, vesti-lo, outro parto. Almoça já atrasado, a mãe novamente põe a roupa de sair. Cadê tempo de almoçar junto com o filho? A pé, o mesmo percurso da manhã. Ela repete:
– Se você também chegar atrasado, a professora vai me chamar a atenção
de novo.

Volta com o mais velho, serve o almoço, Thiago dorme, graças a Deus. Agora sim, ela vai ter tempo para si mesma. Si mesma? Varrer a casa, lavar o banheiro, guardar os brinquedos espalhados pela sala. E então toca o telefone.
– Essa porcaria desse telefone vai acordar o...

É da floricultura. Perguntam se é da casa do senhor César da Silva e Souza. É que ele passou um cheque, e o rapaz precisou confirmar alguns dados. Solange parece não acreditar. “Nossa, ele lembrou! Afinal, 20 anos não são 20 dias!”. E prepara o jantar especial: macarrão com frango. Ah, e um bolo de sobremesa. “Quem sabe dona Hermengarda pinta minhas unhas para eu pagar depois?”.

Ingredientes comprados, vai com o filho mais velho ao banco pagar contas atrasadas. Ela sai da agência às cinco da tarde, corre para buscar Matheus.

O tempo vai passando. Já são quase 9 horas e nada do marido. Entra a propaganda eleitoral gratuita. Crianças para a cama. E ela deita para descansar um pouco.
– Acorda Sô! Vai dormir na cama!

Duas da manhã.

– O bicho pegou lá no parque gráfico. Deu uma pane, as máquinas enguiçaram, os geradores pifaram e aquele filho da puta obrigou todo mundo a ficar até mais tarde. Depois fui com a rapaziada tomar uma cervejinha lá mesmo em Caxias.

Sofia também mora em Caxias. Não recebeu as flores, mas ainda assim foi uma trepada inesquecível. Um ano de namoro escondido do marido dela e da mulher dele. César teve sorte, também chama a amante de Sô. Nunca iria se confundir. A mulher jamais desconfiaria. E o rival não liga tanto para a mulher. O corno é jornalista, sabe de tudo, menos do dia 12 de maio, uma data que o César nunca esquece, qualquer dia vai lembrar o porquê disso...

De repente, lembra-se do cheque na floricultura. Só no trabalho viu que não tinha cobertura. Será que ligaram para sua casa? Não. Sô, ou melhor, Solange teria dito. De qualquer maneira, resolve sondá-la.
– Que cara de sono mais esquisita! Está preocupada com alguma coisa?

Só então é que a mulher se dá conta de que esquecera algo importantíssimo:
– Ai meu Deus! Será que vão reprisar o último capítulo logo mais?


(O texto faz parte do livro Parem as máquinas: jornalistas que valem mais de 50 contos, ed. Casa Jorge)