segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Lar, doce bar

por Charles do Nascimento

O grande Moacyr Luz, sambista da primeira grandeza, está fazendo sucesso também no mercado editorial com a obra Manual de sobrevivência nos butiquins mais vagabundos. O livro estimula a reflexão sobre as práticas e tradiçõesno Rio de Janeiro, com base nos hábitos e comportamentos que caracterizama maneira própria de ser do cidadão carioca. A publicação, um relato importantesobre a memória cultural do Rio de Janeiro, reúne depoimentos e registra aspectos da cidade e os valores de uma cultura muito peculiar, que ainda influencia o resto do país.

Em outro livro (Meu lar é um botequim) Eduardo Goldenberg rende homenagemaos botequins mais vagabundos (e irresistíveis) da Tijuca e de Vila Isabel, bairros da zona norte onde o autor nasceu e foi criado, respectivamente. Outras publicações pegaram carona no mesmo mote e estão 'pipocando' por aí. A própria prefeitura municipal, há alguns anos, patrocina a publicação de um guia sobre os melhores botecos do Rio.

O redator-que-vos-fala também não resiste a um bom pé sujo. E ao longo de três décadas de freqüência assídua (sobretudo antes do matrimônio), coleciona histórias saborosas para compartilhar com os amigos próximos e os amigos de ocasião. Uma delas foi contada recentemente, pelo próprio Moacyr Luz, durante um bate papo em Santa Tereza.

O autor de Saudades da Guanabara conta que, segundo a lenda, o cliente teria chegado a um bar, olhado a vitrine e escolhido o salgado a seu gosto.

- Eu quero aquele quibe. - disse o cidadão, com ar um tanto autoritário.
Sem perder a pose, o português por detrás do balcão respondeu prontamente:
- Que quibe porra nenhuma!.
Com um pano de prato pra lá de encardido, espantou as moscas da vitrine e retrucou:
- Isso aqui é ovo cozido, vai querer ou não?

Se fossemos fazer uso deste espaço para narrar histórias e anedotas de botequim, esse blog seria pequeno. Mas uma tendência estranhamente moderna é dignade nota: a idéia recorrente de os novos proprietários 'modernizarem' alguns dos mais tradicionais pés-sujos da cidade. A novidade, que começou pelos estabelecimentos mais famosos do centro e da zona sul, está se estendendo para botecos bem mais modestos, situados em bairros mais distantes. Pois fica aqui um protesto! Freqüentador de verdade não tolera botequim de grife. Esses bem limpinhos, metidos a besta que reúnem mauricinhos, patricinhas e pseudos-intelectuais de ocasião. Em geral, cobram um preço exorbitante e a comida não presta.

Em tempos de globalização, essa tendência chegou também à longínqua e aprazível Vila da Penha, Zona Norte do Rio. O próprio redator-que-vos-fala foi vítima. Após um dia exaustivo de trabalho (e qualquer trabalho é exaustivo), embarcou no ônibus da linha 350? Passeio-Irajá. Até chegar ao destino, a 28 Km dedistância, foi necessário ficar 1h30 esmagado entre mais de 120 passageiros.

Como ninguém é de ferro, antes de começar a segunda jornada de 'tarefas' no seu sacro santo lar, resolveu dar uma paradinha 'tudo muito rápido' no bar em frente ao ponto de ônibus. E eis que para minha surpresa um dos meus pés-sujos prediletos desapareceu. Como num passe de mágica, simplesmente virou pé limpo. Agora foi todo reformado, pintado, ganhou balcão de madeira, piso branco, mesas de granito etc e tal. No cardápio, hambúrguer, hot dog, açaí com granola. O banheiro está mais cheiroso do que o lá de casa... Enfim, ficou tudo uma grandessíssima merda!

O empresário que financia um absurdo desta monta, na realidade não reconhece o verdadeiro papel social do seu negócio. E fica aqui a nota de desagravo. Salvem os últimos pés sujos remanescentes, que deveriam ser tombados como patrimônio cultural da cidade! A cantora Alcione, em uma de suas mais brilhantescomposições, faz um relato definitivo:

Mesa de bar
É lugar para tudo que é papo da vida rolar
Do futebol, até a danada da tal da inflação
É coração, fantasia e realidade
É um ideal paraíso adonde nós fica a vontade

Mesa de bar
É cerveja suada matando a pau o calor
Vamos cantar aquela cantiga que fala da luta e do amorMas antes brindar em homenagemAqueles que já não vem mais
Saúde pra gente, moçada, que a gente merece demais

Em torno de um copo a gente inventa um mundo melhor
A dona birita levanta a moral de quem está na pior
A água da mágoa se enxuga no pano daquela toalha
Pra acabar com a tristeza
Esse remédio não falha

Na mesa de um bar todo mundo é sempre o maior
Todo mundo derrama as tintas da sua alegria
Copos batendo na festa da rapazeada
Se bem que a gente não esquece que a barriga anda meio vazia

É que mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade
Companheiros em pleno exercício de democracia
Mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade
E companheiros em pleno exercício de democracia

Um comentário:

Marcelo disse...

O autor só pecou por não indicar um pé sujo ao leitor !
Abraços!