sábado, 12 de julho de 2008

Saudades

por Charles Nascimento

Este ano, em dezembro, completará quatro anos que a mãe do escritor-que-vos-fala morreu. Foi um adeus prematuro. Perdeu a luta contra a diabetes aos 58 anos de idade. De herança, além dos princípios éticos e o incessante gosto pela leitura, deixou seu belíssimo acervo literário. Nem tanto pela quantidade, mas pelo conjunto da obra. Em geral, os grandes clássicos.

Fruto de uma geração que se orgulhava de pertencer ao ensino público, ela foi aprovada em três concursos federais – optou pelo sistema Telebrás. Foi ela também quem alfabetizou o escritor-que-vos-fala.

Esses dias, enquanto velhas fotografias amareladas eram remexidas, a imagem da dona Celina ganhou contornos mais nítidos. E veio à lembrança desse redator aquele velho apreço dela pelas letras.

Uma prática muito salutar nos anos 50 e 60, ela contava, eram os cadernos de versos das adolescentes. Segundo a tradição da época, ao final do ano letivo as alunas deixavam mensagens carinhosas umas às outras, ensaiando os primeiros passos no ambiente literário. Ceiça, como era conhecida entre os mais próximos, sempre citava o tal caderno capa dura, que o escritor-que-vos-fala viu apenas duas ou três vezes.

Junto com as lembranças do caderno vieram à tona histórias saborosas sobre a Era do Rádio, dos grandes atores do cinema hollywoodiano, as damas brasileiras do teatro, dos concursos de Miss, as sugestões de livros lidos por ela no passado. Enfim, recortes de período que antecedeu o advento da TV – inaugurada no Brasil em 1950, mas restrita às camadas mais abastadas da sociedade.

Apesar do pouco contato com o tal caderno de versos, escritor-que-vos-fala lembra bem que lá estavam reunidos uns 50 textos. Alguns deles, verdadeiras preciosidades em verso e prosa. Com o devido pedido de desculpa à autora, pois seu nome não ficou registrado da memória, Cafezinho com letras transcreve a primeira estrofe dessa obra-prima do bom humor. Alguns trechos provavelmente jamais sairão da cabeça do escritor-que-vos-fala:


Tirei zero em matemática
Passei raspando em Latim
Jamais gostei de gramática nem ela gosta de mim
Quase tropeço em canto
Português que não tem vez
E vou dizer pra ser franca
Fui reprovada em Inglês

Embora de simplicidade exemplar (e brilhante!, diga-se de passagem), um breve passeio entre aquelas singelas mensagens de fim de ano escritas há meio século e os cadernos atuais mostra o quão empobreceu a cultura brasileira nesse curto intervalo histórico. Além de criativa, a autora do texto acima, que elaborou uma personagem avessa aos estudos, relatou um currículo escolar com matérias como Francês, Latim, Canto...

Sobre a decisão de retirar o latim da grade escolar, aliás, dona Celina jamais viria a se conformar. Entre outros argumentos, dizia não compreender como é possível aprender Português sem os conceitos ao menos básicos da língua mãe. O próprio escritor-que-vos-fala, fruto uma geração mais recente, já foi vítima do empobrecimento da grade curricular nas escolas. E não raras vezes, teve que ir correndo pedir abrigo no colo da mamãe.

Mas essa é uma outra história, que pode ser abordada em próximas oportunidades.

A atual geração já tem muito para contar aos filhos futuramente. Em pauta: os destaques do Big Brother, a poesia reveladas nas letras do Funk, a bunda da mulher melancia e por aí vai.

E como diria o saudoso Raul Seixas, “parem esse mundo que eu quero descer”.

Um comentário:

Marcelo Queiroz disse...

Ótimo texto Charles...

Os versos de sua mãe são quase uma auto-biografia da minha época estudantil.